A legislação brasileira sobre aborto autoriza a interrupção da gravidez em três casos: quando a gestação representa risco para a vida da mulher; após estupro/violência sexual; e em situações de feto anencéfalo. Os obstáculos para realizar o procedimento, contudo, ainda são muitos, mesmo quando existe a permissão legal.
O caso da menina de 11 anos em Santa Catarina, vítima de estupro e impedida pela juíza de realizar o aborto legal, chocou o país. Até o mês de abril, 15 garotas com até 14 anos conseguiram fazer a interrupção da gravidez pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil em 2022.
Os números foram obtidos pelo Metrópoles, por meio do Datasus, que utiliza dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS). No mesmo período de 2021, foram 45 abortos legais realizados em meninas de até 14 anos; em 2020, 30.
É difícil avaliar a variação dos números, que podem ser fruto de subnotificação do sistema, por exemplo. Dos 15 abortos legais nesta faixa etária registrados em 2022, nove foram feitos em garotas pardas; um em uma menina negra; três em crianças brancas; e em dois casos não havia informação sobre a raça.
São Paulo fez três procedimentos; Minas Gerais e Pará computaram dois, cada. Os estados de Roraima, Amapá, Rondônia, Ceará, Bahia, Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul registraram, cada, um caso de aborto legal em crianças de até 14 anos.
A antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Debora Diniz, especialista em direitos humanos e bioética, identifica ao menos três barreiras que dificultam o acesso das mulheres elegíveis ao procedimento:
“A primeira é o acesso à informação: as mulheres, as meninas, as pessoas que podem engravidar não sabem que elas podem ter acesso a esse direito em qualquer serviço de saúde. A segunda é a desinformação, com estigma intenso sobre o aborto, inclusive entre os serviços de saúde, com perseguição aos profissionais. […] E a terceira ocorre em situações como a dessa menininha, em que há uma violência doméstica intrafamiliar, e as mulheres e meninas chegam tardiamente ao serviço de saúde”.
Nas situações previstas por lei, autorizações judiciais ou boletins de ocorrência não são necessários para que o aborto seja feito. Qualquer hospital pode realizá-lo, na teoria, mas poucos fazem de fato. Soraia Mendes, advogada especialista em direito das mulheres, aponta que “parte do corpo médico responsável por esses procedimentos ainda se considera ‘senhor’ do corpo feminino”.
“A medicina sempre teve uma incidência muito grande de poder sobre o corpo da mulher. É por isso que temos níveis altíssimos de violência obstétrica, [como] mulheres negras que não recebem anestesia porque se acredita que elas têm mais resistência a dor. Muitas vezes, o corpo médico e os profissionais ainda têm uma mentalidade arraigada em padrões de natureza moral e o entendimento de que o corpo feminino é seu espaço de poder”, destaca.
A juíza Joana Ribeiro, responsável pela decisão de manter a criança de Santa Catarina em um abrigo, sem a possibilidade de realizar o procedimento, argumenta que o aborto foi negado porque “passou do prazo”.
Não há tempo para interrupção da gravidez definido em lei. O que existe é a chamada regulamentação de política pública, que orienta o prazo máximo de 20 semanas, ou peso de 500 g do feto. Em muitos casos, porém, a descoberta da gestação é tardia.
“Nas situações em que a violência sexual e consequentemente a gravidez são descobertas tardiamente, há segredo, medo, desconhecimento. Então, a imputação desse limite gestacional é uma barreira adicional injusta, em que se ignora a cena original de violência contra as meninas”, salienta Debora.
“Mesmo se você considerasse a política pública como referência, em uma menina de 11 anos a gravidez implica risco de vida. Para risco de vida, não há limite gestacional”, completa a antropóloga. “O que precisa ser verificado é a viabilidade do procedimento – nesse caso, em um corpo infantil”, conclui Soraia.
Via BN